segunda-feira, 11 de outubro de 2010

UM DIA COMO OUTRO. (crônica)

Uma pequena confusão na esquina do cemitério. Carros se esbarram, insensíveis aos caixões que repousam os inertes corpos nas duas capelas do São Jõao Batista. Eu desço a ladeira pensativa. Preocupada com os deveres diários. A aglomeração de pessoas me chama mais a atenção que de costume. Passo quase sempre por este caminho, para alcançar a avenida mais rápidamente. Não são os amigos e familiares dos defuntos, que costumeiramente velam seus entes queridos e que, de vez em quando, vêm à porta abocanhar um pouco de ar sem o cheiro das velas derretidas, que lá dentro impregna os narizes chorosos. Não! São vozes agressivas que chamam a atenção porque querem ser as donas da verdade. Os senhores absolutos dos volantes. Os ases da direção ofensiva! Eu perpasso o caminho ausente ao vozerio de xingamentos. Aos oportunos conselhos sobre direção defensiva.Supero as portas das duas capelas. Uma no final da ladeira e  a outra ao lado da entrada principal do cemitério. Em uma delas já velei meu pai, na outra uma sogra depois mais uma sogra. E o mais doloroso: um ex marido. Ex., mas sempre e eternamente o pai de meu filho.
Aqui, hoje, eu supero essas barreiras. Aquelas lágrimas que lá rolam, não me pertencem. Os lamentos vêm de outras bocas. A perda mora em outros corações.Esses mortos não são "meus mortos". Mas, apesar disso uma sombra cai sobre mim. Um arrepio. Um aperto no peito. Tristes lembranças se fazem presentes. Um velório nunca é feliz.
Deveríamos fazer como em outras culturas, onde se comemora esse dia como nós comemoramos os aniversários ou as bodas. Poderiamos rir e cantar para as almas desencarnadas. Tomar café. Beber cerveja. Bater um bom papo e festejar, lembrando o quão boa ou necessária, nos foi aquela pessoa, que jaz imóvel em seu leito de madeira. Não fazemos isso e levamos, pelo resto de nossas vidas,a lembrança do corpo gélido e arroxeado, do ser que tanto amamos em vida. Não é justo. Não é decente.
É uma agressão às imagens felizes que, de repente, se tornam pano de fundo de um último e terrível retrato. O da morte.
Viro a outra esquina. Abandono os espectros no meu rastro. Deixo as dores para trás. Alcanço a avenida. Atravesso a rua movimentada da urbe. Entro no supermercado. Puxo a minha lista de alimentos para o mês.
Engato a marcha do carrinho, e parto para mais um dia de vida. Chata. Cansativa e repetitiva. Porém, prefiro-a a estar vinte passos atrás, deitada imóvel,deixando para outros o caminho que percorri nos últimos quinze minutos.

                      Daniela Santi

Um comentário:

  1. Muito bom! Real! Reflexivo! Mas não precisamos e nem temos que fazer como a grande massa. Permita-se ser quem vc quer ser e fazer o que quer fazer.

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